Declaração

Tem coisa que não basta decretar

Registrar, inscrever, firmar

"Pronto, a partir de hoje assim será"


Tem coisa que só se sustenta 

Se feita e refeita reiteradamente todo dia


Como amor e democracia

Pessoa

Quem sou eu para mim?
Não sou mais que uma sensação de mim

Sentir a existência é doer-me no avesso
Numa pele forjada
Na imagem de mim que reveste um ninguém que eu bem conheço

A pessoa que experimenta a sensação de existir
Sente a dor vazia
De estar somente cheia de si

Sou um corpo que se olha
E que não sabe se essa dor de existir
Está dentro ou fora


Ainda é sendo

É preciso aceitar o tempo inventado
Para saber quando

Será antes, for amanhã

Quando estou
Quando guardo
Quando será finalmente o futuro (tão esperado)
E quando deixará de ser passado

Mas também é preciso esperar
Porque ainda é cedo

Tudo conforme o não planejado

Deixei amanhã para depois
Não recomecei nada
Para sair pela entrada

Não encerrei ontem
Pelo fim, fui distraída
E entrei pela saída

Desconstruir não é destruir

Daqui, dos meus escombros, vejo o que posso:
A desconstrução não deve
Deixar destroços
Pois desconstruir não é destruir
É um desmontar sem ruir
Para transformar
Outras palavras, mesmos pedaços

Eis aqui o óbvio

O óbvio se vê sob a luz, 
Sob as pálpebras, 
Dentro dos quartos,
No ângulo do olhar,
E nos gestos imediatos.

O óbvio é visto em atos,
E, de cima ou de fora,
É óbvio para quem sente.
Menos para aquele que
Com ele está de frente.

O óbvio é persistente
Mas me escapa pela tangente (E me cala, de repente).
Não consigo dizê-lo.
Não sei por quê guardo
Se quero somente dá-lo, não tê-lo 
Tão obviamente


Duas mulheres

Amaram as mesmas coisas
Choraram no mesmo dia
Fizeram as mesmas perguntas
Para um mesmo deram a mão.
Uma já leu a outra
E sabe como ela se sente,
Ainda que reinvente
Os caminhos do seu coração.
Não pretendem ser amigas,
Mas não sustentam ser rivais,
E são profundamente leais 
A esta tácita relação.
Não se conheceram pessoalmente,
Mas praticaram o perdão.
Entre elas não há competição
Sobre quem tem mais beleza
Mais sucesso, mais magreza, 
Mais talento com o violão.
Nenhuma delas tem plenas certezas
Quando a única constância 
É de transformação.
E para que não fiquem presas
- na história delas mesmas -
Se libertam juntas,
Em silêncio e em comunhão.

O que parece?

Parece o quê?
Uma nuvem parece
Uma esperança
Parece um recomeço
Sem paredes

Indo

Olho onde estou
E percebo que não quero estar
Em lugar nenhum
Além de algum lugar
Bem no meio do caminho 
Para onde eu quero ir

Isto

Disto
Penso apenas rumores
Daqueles que sempre rimam
Com o segundo verso

Visto
Este meu silêncio cheio
Do que poderia ser
Um avesso do inverso

Deste nada
Que circunscreve o tempo
E que morre, na presença
No sorriso controverso

Não acredito
Porque vivo

Não compreendo
Por que sinto

E não consigo dar nome
Porque já existe

Tudo isto